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No Labirintto Z

"Este labirinto [ruas indefinidas] de linhas retas, não de complexidade, aonde o leva o tempo de um homem cuja verdadeira vida está longe." (Jorge Luis Borges)

No Labirintto Z

"Este labirinto [ruas indefinidas] de linhas retas, não de complexidade, aonde o leva o tempo de um homem cuja verdadeira vida está longe." (Jorge Luis Borges)

Dia das mães

30.04.05, Zana
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A Bisavó

Rubem Alves



Minhas netas: hoje é o dia das mães. Vou falar sobre a minha mãe, sua bisavó, que vocês não chegaram a conhecer. Ela morreu antes de vocês nascerem.

Para falar sobre a minha mãe eu vou dar uma explicação inicial. Gosto de escrever. Especialmente para crianças. Tanto para crianças como vocês quanto para as crianças que moram, escondidas, dentro dos adultos. Se eles deixassem as crianças que moram neles sair do lugar onde estão presas, eles poderiam brincar e ficar mais bonitos.

Escrevendo, eu uso sempre "metáforas". O nome é difícil mas é fácil explicar. Metáfora é quando, olhando para uma coisa, a gente vê outra. Neruda, poeta, olhou para uma cebola e viu que ela se parecia com uma "rosa de água com escamas de cristal!". Ora, cebola é cebola. Não é rosa. Mas o poeta viu, na cebola, uma rosa. Cecília Meireles pensou sobre a vida dela e viu um barco navegando por um mar sem fim. Ora, a vida não é um barco navegando. Mas a poeta viu, na própria vida, um barco a navegar no mar azul...

Pois eu vou usar uma metáfora que vocês, a princípio, não entenderão - mas entenderão, porque toda criança tem olhos e imaginação de poeta: no tempo da minha mãe, sua bisavó, as mulheres eram como árvores. Agora, elas se parecem com pássaros...

Vocês se lembram da estória da Cinderela. O nome antigo era "Gata Borralheira". Vejam: dizer que uma menina é "gata borralheira" é uma metáfora. Ela era uma menina; não era uma gata. Peçam ao seu pai ou sua mãe que explique para vocês a razão dessa metáfora. Borralheira é que gosta de borralho. Sabem o que é borralho? Borralho são as cinzas quentes que ficam no fogão de lenha, depois de apagado o fogo... Pois a estória moderna daquela menina triste, do Walt Disney, conta que ela tinha uma "Fada Madrinha"... Na estória original - muito antiga - não havia nenhuma "Fada Madrinha". Era diferente. A mãe da menina havia morrido. E agora ela estava nas garras de uma madrasta malvada e duas filhas invejosas que a mantinham presa na cozinha - perto do borralho. Abandonada... Não, não, não! Não estava abandonada. Mesmo morta, a sua mãe continuava a protegê-la. Quem a protegia não era uma Fada Madrinha; era a sua mãe! E sabem como ela a ajudava? Ela, mãe, morava numa árvore que a menina plantara no quintal da casa. A árvore estava sempre cheia de pássaros. Os pássaros eram os anjos da mãe. Eram os pássaros que ajudavam a Gata Borralheira...

As mulheres, nos tempos antigos, nos tempos da minha infância, eram árvores.

No meu sítio, lá em Pocinhos do Rio Verde, tenho árvores plantadas para todos os meus amigos que morreram. Plantei também uma árvore para a minha mãe. Ainda não plantei uma árvore para o meu pai porque ainda não encontrei a árvore-metáfora que se parece com ele. Como pode uma árvore se parecer com uma pessoa? Pode. Para o meu pai, escolhi uma laranjeira. Meu pai adorava chupar laranjas. Ele ia descascando as laranjas com incrível técnica, sem jamais ferir a laranja. Laranja com casca ferida é ruim de chupar. As cascas inteiras, ele ia pendurando no braço esquerdo. Cascas de laranja, secas, são um combustível maravilhoso. Eram usadas, de manhã, na feitiçaria de acordar as brasas para acender o fogo, como já expliquei. Essas laranjeiras modernas, enxertos, não são laranjeiras de verdade. Árvores anãs, mirradas - as laranjas ao alcance da mão.

Para ser metáfora do meu pai a laranjeira tem de ser das antigas, que demoravam para crescer e ficam altas, as laranjas amarelas lá no alto! Era preciso subir na laranjeira para apanhar as laranjas. Era o que eu fazia com meus amigos. Subíamos na laranjeira e chupávamos sem parar. Cada um com seu canivetinho. Já havíamos aprendido a arte de descascar laranjas como o meu pai. Eram tantas as laranjas que chupávamos que ficávamos com vontade de fazer xixi. Pois não havia problema: fazíamos xixi do alto das laranjeiras e morríamos de dar risada, vendo o xixi cair e se empoçar na terra. Essa é uma das vantagens de ser homem: fazer xixi do alto de uma laranjeira... Quando eu encontrar uma muda das laranjeiras antigas plantarei como metáfora do meu pai. E então, os passarinhos, especialmente os sanhaços azuis, anjos dele, virão chupar as laranjas.

Para minha mãe plantei um pé de camélia. Camélias são flores lindas - tão perfeitas, alguma brancas, outras vermelhas. Fui a Santiago de Compostela, no norte da Espanha. Dizem que Deus, em Santiago, é mais forte que em outros lugares. Por essa razão, os que acreditam fazem longas peregrinações a pé para chegar até lá, onde se encontra uma gigantesca catedral. Não fui a pé. Fui de carro. Visitei a catedral. Não me senti mais perto de Deus. Me senti mais longe. Uma construção feia, pesada, escura. Me deu tristeza. Mas, saindo triste da catedral, entrei nos imensos parques que há por lá. Tudo era luz, cor, leveza, pássaros voando e cantando, a vida explodindo em todos os lugares. Fiquei inundado de alegria.

O Criador, no Paraíso não fez nenhuma catedral. Se gostasse teria feito. Plantou árvores. Camélias... Nos parques fora da catedral havia camélias por todos os lados - árvores enormes, cobertas de flores. Sempre que vejo a beleza surgindo me sinto próximo de Deus. Deus é beleza mansa. Sugiro que, no futuro, se façam peregrinações a Santiago de Compostela para se ver as camélias. Porque se São Tiago foi enterrado por lá, como se diz, garanto que ele não está dentro daquela igreja escura. Está é passeando pelos parques. Os passarinhos e as flores são os Anjos de São Tiago!

Eu olhava para as camélias e me lembrava da camélia que plantei para a minha mãe...

Disse que antigamente as mulheres se pareciam com árvores. As árvores não saem do lugar. Crescem onde plantamos. Indefesas. Não reagem, não fogem, não gemem - nem mesmo quando são cortadas a machado. Pois assim eram as mulheres: nasciam e pelo resto de suas vidas teriam de obedecer aos homens. Primeiro, tinham de obedecer as ordens do pai. Depois, tinham de obedecer as ordens do marido. Carlos Gomes fez até uma cantiga de conselhos para uma jovem que queria se casar e ele a advertia de que, com isso ela iria perder a liberdade: " a vontade ao marido há de fazer, que esse dever o casamento traz..". Na verdade, nem antes de casar elas estavam livres. Estavam à mercê da vontade dos pais. Era o pai que decidia se ela devia se casar, quando e com quem. E nem tinham a liberdade de se decidir por uma profissão. Lugar de mulher era na casa, no fogão, na máquina de costura. As mulheres não eram donas do seu corpo, não mandavam no seu destino. Árvores à mercê da vontade do jardineiro, sem poder fugir... Como gostariam de ser pássaros, e voar para longe, longe...

Não podendo ser pássaros, as árvores dão flores. Flores são os pássaros das árvores. Flores são vôos que não conseguiram voar e se cristalizaram em beleza e perfume. Quem dá uma flor a alguém está lhe dando um desejo de voar.

Minha mãe era uma árvore que queria voar e não podia. Aí, como a camélia, ela começou a dar flores. As flores que minha mãe dava apareciam sob a forma de música. Menino, eu a ouvia estudando piano horas seguidas. Enquanto tocava piano ela voava pelo mundo da beleza que nem pai e nem marido podiam impedir: a alma é livre.

Por que uma pessoa gosta de música? Eu acho que uma pessoa gosta de música, primeiro, porque a música já nasce com a gente. Ela está lá, no fundo da alma, dormindo. Mas é necessário que haja alguém que desperte essa "Bela Adormecida". No caso de minha mãe, eu suspeito que tenha sido um professor de piano... Ah! os professores de piano, seres perigosos, sedutores... O Vinícius de Moraes compôs uma música malandra chamada "Aula de Piano" que colocaram, indevidamente, junto com as canções infantis da "Arca de Noé".

Minha mãe, vez por outra, se referia ao seu professor de piano. O nome dela era Riciotti - nem sei se é assim que se escreve. Vi uma foto dele. Másculo. Tinha bigodes torcidos, voltados para cima. Fantasiar não faz mal... Fantasio que minha mãe, adolescente, ficou apaixonada por ele. Tenho mesmo a suspeita de que ele a amou e chegou mesmo a compor uma valsa para ela: "Ela aos quinze anos". Se estou errado, meus irmãos que me corrijam. Mas, como diz o ditado italiano, "se não é verdadeiro, foi bem imaginado". Como no filme "Festa de Babette" - a jovem ficou apaixonada pelo professor de canto. Proibidos de amar pelo pai e dono dela, eles faziam declarações de amor cantando duetos apaixonados de ópera! Gosto de imaginar que tenha sido assim.

Professor de música! Pobretão. Meu avô, trisavó de vocês, Capitão Evaristo, rico comerciante dono de sobrado colonial e carro importado jamais iria permitir que filha sua se casasse com um pobretão. Minha mãe se casou com meu pai, seu bisavô, um homem muito bom, divertido, manso, que não tinha cultura musical, mas era rico. Depois, como eu já contei, ele ficou pobre... "Carminha" - ele dizia com carinho - "toque uma daquelas valsinhas boas prá dormir." Minha mãe atendia o seu pedido inocente, interrompia a balada em sol de Chopin e tocava a valsinha. Logo ele dormia como uma criança...

Minha mãe era uma camélia mansa cujas flores eram a música. Há determinadas peças que, ao ouvir, sempre me lembro dela. Se vocês quiserem conhecer um pouco a alma da sua bisavó, é só pedir, e eu colocarei para tocar os CDs com as músicas que ela amava.

Outro jeito que as mulheres-árvores tinham de florir eram os filhos. Se elas não podiam voar de verdade, voavam imaginando os filhos voando. Viviam uma vida simples, modesta, sempre plantadas no chão - e eram sempre uma sombra e um colo onde os filhos tristes encontravam conforto. Especialmente nas coisas gostosas que só as mães sabiam fazer na cozinha. Fazer o prato predileto do filho: era o jeito que elas tinham de dizer às noras: "Você nunca tomará o meu lugar!"

Claro, havia umas mulheres revoltadas por não poder voar. Viravam cactus, só espinho. E os filhos sofriam. Minha avó era assim - que Deus a tenha. Mas não minha mãe, que aprendeu ternura com uma velha escrava chamada Iáiá. Por vezes as mães verdadeiras não são as mães de barriga - são as mães de coração.

As mulheres, hoje, se cansaram de viver para fazer vontade de pai e de marido. Estão se transformando em pássaros: querem voar - determinar o seu destino, ser donas de suas vidas. Liberdade: esse é um direito de todo ser humano.

Quando vocês tiverem a minha idade e forem escrever sobre suas mães, ao invés de dizer que elas eram árvores vocês dirão que elas eram pássaros! E como os pássaros são belos no seu vôo! Podem ser suaves como as gaivotas ou terríveis como os gaviões... Mas mesmo os pássaros precisam de uma árvore onde descansar e fazer os seus ninhos...

Hoje, dia das mães, brinque de ser poeta. Dê, como presente à sua mãe, uma metáfora poética. De todas as flores e plantas que você conhece, qual é aquela que mais se parece com ela? Que flor ou árvore você plantaria para nela ela venha a morar, um dia? Há uma grande variedade que vai dos delicados jasmins do imperador até os cactus... Mas pode ser que sua mãe seja um pássaro!

Inania Verba

18.04.05, Zana

Ah! quem há de exprimir, alma impotente e escrava,
O que a boca não diz, o que a mão não escreve?
— Ardes, sangras, pregada à tua cruz, e, em breve,
Olhas, desfeito em lodo, o que te deslumbrava...
O Pensamento ferve, e é um turbilhão de lava;
A Forma, fria e espessa, é um sepulcro de neve...
E a Palavra pesada abafa a Idéia leve,
Que, perfume e clarão, refulgia e voava.

Quem o molde achará para a expressão de tudo?
Ai! quem há de dizer as ânsias infinitas
Do sonho? e o céu que foge à mão que se levanta?

E a ira muda? e o asco mudo? e o desespero mudo?
E as palavras de fé que nunca foram ditas?
E as confissões de amor que morrem na garganta?

Olavo Bilac


Carta em 2070

17.04.05, Zana
Assunto: Carta escrita em 2070

"Estamos no ano de 2070, acabo de completar os 50, mas a
minha aparência é de alguém de 85.
Tenho sérios problemas renais porque bebo muito pouca água.
Creio que me resta pouco tempo.
Hoje sou uma das pessoas mais idosas nesta sociedade.
Recordo quando tinha 5 anos. Tudo era muito diferente.
Havia muitas árvores nos parques, as casas tinham bonitos
jardins e eu podia desfrutar de um banho de chuveiro com cerca de uma
hora.
Agora usamos toalhas em azeite mineral para limpar a pele.
Antes todas as mulheres mostravam a sua formosa cabeleira.
Agora devemos rapar a cabeça para a manter limpa sem água.
Antes o meu pai lavava o carro com a água que saía de uma mangueira.
Hoje os meninos não acreditam que a agua se utilizava dessa forma.
Recordo que havia muitos anúncios que diziam CUIDA DA AGUA,
só que ninguém lhes ligava; pensávamos que a agua jamais se podia
terminar.
Agora, todos os rios, barragens, lagoas e mantos aquíferos
estão irreversivelmente contaminados ou esgotados.
Antes a quantidade de agua indicada como ideal para beber era
oito copos por dia por pessoa adulta.
Hoje só posso beber meio copo. A roupa é descartável, o que
aumenta grandemente a quantidade de lixo; tivemos que voltar a usar os
poços sépticos (fossas) como no século passado porque as redes de
esgotos não se usam por falta de água.
A aparência da população é horrorosa; corpos desfalecidos,
enrugados pela desidratação, cheios de chagas na pele pelos raios
ultravioletas que já não têm a capa de ozono que os filtrava na atmosfera.
Imensos desertos constituem a paisagem que nos rodeia por todos os lados.
As infecções gastrointestinais, enfermidades da pele e das
vias urinárias são as principais causas de morte.
A industria está paralisada e o desemprego é dramático.
As fábricas dessalinizadoras são a principal fonte de emprego
e pagam-te com agua potável em vez de salário.
Os assaltos por um bidão de agua são comuns nas ruas desertas.
A comida é 80% sintética. Pela ressiquidade da pele uma jovem
de 20 anos está como se tivesse 40.
Os cientistas investigam, mas não há solução possível.
Não se pode fabricar agua, o oxigénio também está degradado
por falta de arvores o que diminuiu o coeficiente intelectual das
novas gerações.
Alterou-se a morfologia dos espermatozóides de muitos
indivíduos, como consequência há muitos meninos com insuficiências,
mutações e deformações.
O governo até nos cobra pelo ar que respiramos. 137 m3 por
dia por habitante e adulto.
A gente que não pode pagar é retirada das "zonas ventiladas",
que estão dotadas de gigantescos pulmões mecânicos que funcionam com
energia solar, não são de boa qualidade mas pode-se respirar, a idade
média é de 35 anos.
Em alguns países ficaram manchas de vegetação com o seu
respectivo rio que é fortemente vigiado pelo exercito, a agua
tornou-se um tesouro muito cobiçado mais do que o ouro ou os
diamantes.
Aqui em troca, não há arvores porque quase nunca chove, e
quando chega a registar-se precipitação, é de chuva ácida; as estações
do ano tem sido severamente transformadas pelas provas atómicas e da
industria contaminante do século XX.
Advertia-se que havia que cuidar o meio ambiente e ninguém
fez caso.
Quando a minha filha me pede que lhe fale de quando era jovem
descrevo o bonito que eram os bosques, lhe falo da chuva, das flores,
do agradável que era tomar banho e poder pescar nos rios e barragens,
beber toda a agua que quisesse, o saudável que era a gente.
Ela pergunta-me: Papá! Porque se acabou a agua?
Então, sinto um nó na garganta; não posso deixar de sentir-me
culpado, porque pertenço à geração que terminou destruindo o meio
ambiente ou simplesmente não tomámos em conta tantos avisos.
Agora os nossos filhos pagam um preço alto e sinceramente
creio que a vida na terra já não será possível dentro de muito pouco,
porque a destruição do meio ambiente chegou a um ponto irreversível.
Como gostaria voltar atrás e fazer com que toda a humanidade
compreendesse isto quando ainda podíamos fazer algo para salvar o
nosso planeta TERRA !"

Documento extraído da revista biográfica "Crónicas de los
Tiempos" de Abril de 2002. (Recebi por email do Thiago Mizuno )

Texto de Martha Medeiros

16.04.05, Zana

Em Londres um pub está fazendo sucesso porque instalou para seus clientes uma cabine telefônica com uma sonorização peculiar: enquanto a pessoa fala ao telefone, pode acessar o som de um congestionamento, com muito buzinaço.

Ou pode acessar o som de um ambiente de escritório. Toda essa parafernália é para que quem esteja do outro lado da linha não identifique o som do bar.

Assim o bebum pode dar uma desculpa esfarrapada e chegar em casa sem levar uma descompostura, afinal, estava trabalhando até tarde, o coitado, e ainda por cima ficou preso num engarrafamento depois.

Essa cabine telefônica com efeitos especiais só vem demonstrar que os bares andam muito moderninhos, mas os casamentos continuam parados no tempo, mesmo na vanguardista Inglaterra. "Só vou se você for" segue na moda. Enquanto isso a hipocrisia deita e rola.

Muitas pessoas ainda têm uma idéia convencional do casamento: encaminham-se para o altar como quem encaminha-se para o supermercado em busca de um produto pronto, industrializado, com um rótulo dando as instruções de como utilizá-lo, e parece que a primeira instrução é: nenhum dos dois têm o direito de se divertir sozinho ou com os amigos, a menos que o cônjuge esteja junto.

Não é de estranhar que os prazos de validade do amor andem cada vez mais curtos.

Não há paixão que resista ao grude.

Não há paciência que resista à patrulha.

Não há grande amor que prescinda de outras amizades.

Sair sozinho para beber com os amigos deveria ser um dos 10 mandamentos para uma união estável, valendo para ambos os sexos. Quem não gosta de bar pode substituir por futebol, cinema, shows, sinuca, saraus ou o que o Caderno de Cultura sugerir.

E não perca tempo lamentando por aquele que vai ficar em casa. Provavelmente ele vai se divertir tanto quanto. Ouvir música, ver televisão, ler livros, abrir um vinho, tomar um banho de duas horas, navegar na internet, dormir cedinho, tudo isso também é um programação.

Quem não sabe ficar sozinho não pode casar, sob pena de transformar o matrimônio num presídio para dois. Tem muita coisa em Londres que eu gostaria de ter aqui: parques mais bem cuidados, mais livrarias, mais respeito à individualidade, melhor transporte público, prédios mais charmosos. Só dispensaria o clima e esse pub pra lá de vitoriano, onde pessoas adultas são incentivadas a inventar um álibi para justificar um atraso.

Atraso é ter que mentir para que o outro não perceba que você está feliz.

Manoel de Barros III

14.04.05, Zana

Uma Didática da Invenção
do "O Livro das Ignorãnças" ed. Civilização Brasileira.

I

Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:

a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca

b) 0 modo como as violetas preparam o dia para morrer

c) Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas têm devoção
por túmulos

d) Se o homem que toca de tarde sua existência num fagote, tem
salvação

e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega mais ternura
que um rio que flui entre 2 lagartos

f) Como pegar na voz de um peixe

g) Qual o lado da noite que umedece primeiro.

Etc.

etc.

etc.

Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.

IV
No Tratado das Grandezas do Ínfimo estava escrito:

Poesia é quando a tarde está competente para Dálias.

É quando

Ao lado de um pardal o dia dorme antes.

Quando o homem faz sua primeira lagartixa

É quando um trevo assume a noite

E um sapo engole as auroras

IX

Para entrar em estado de árvore é preciso

partir de um torpor animal de lagarto às

3 horas da tarde, no mês de agosto.

Em 2 anos a inércia e o mato vão crescer

em nossa boca.

Sofreremos alguma decomposição lírica até

o mato sair na voz.

Hoje eu desenho o cheiro das árvores.

IX

O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa

era a imagem de um vidro mole que fazia uma

volta atrás de casa.

Passou um homem depois e disse: Essa volta

que o rio faz por trás de sua casa se chama

enseada.

Não era mais a imagem de uma cobra de vidro

que fazia uma volta atrás de casa.

Era uma enseada.

Acho que o nome empobreceu a imagem

Apresentação

11.04.05, Zana
Aqui está a minha vida- esta areia tão clara
com desenhos de andar dedicados ao vento.

Aqui em minha voz- esta concha vazia,
sombra de som curtindo o seu próprio lamento.

Aqui está a minha dor- este coral quebrado,
sobrevivendo ao seu patético momento.

Aqui está a minha herança- este mar solitário,
que de um lado era amor e, do outro, esquecimento.

Cecília Meireles

Alberto Caieiro

11.04.05, Zana
Poemas Inconjuntos". Poemas Completos de Alberto Caeiro.

Tu não me tiraste a Natureza...
Tu mudaste a Natureza...
Trouxeste-me a Natureza para o pé de mim,
Por tu existires, vejo-a melhor, mas a mesma,
Por tu me amares, amo-a do mesmo modo, mas mais,
Por tu me escolheres para te ter e te amar,
Os meus olhos fitaram-na mais demoradamente
Sobre todas as coisas.
Não me arrependo do que fui outrora
Porque ainda o sou.



Acontece

10.04.05, Zana

Bateram à minha porta em 6 de agosto,
aí não havia ninguém
e ninguém entrou, sentou-se numa cadeira
e transcorreu comigo, ninguém.

Nunca me esquecerei daquela ausência
que entrava como Pedro por sua causa
e me satisfazia com o não ser,
com um vazio aberto a tudo.

Ninguém me interrogou sem dizer nada
e contestei sem ver e sem falar.

Que entrevista espaçosa e especial!

Pablo Neruda

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