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No Labirintto Z

"Este labirinto [ruas indefinidas] de linhas retas, não de complexidade, aonde o leva o tempo de um homem cuja verdadeira vida está longe." (Jorge Luis Borges)

No Labirintto Z

"Este labirinto [ruas indefinidas] de linhas retas, não de complexidade, aonde o leva o tempo de um homem cuja verdadeira vida está longe." (Jorge Luis Borges)

Manoel de Barros

20.09.04, Zana
"Ando muito completo de vazios.
Meu órgão de morrer me predomina.
Estou sem eternidades.
Não posso mais saber quando amanheço ontem.
Está rengo de mim o amanhecer.
Ouço o tamanho oblíquo de uma folha.
Atrás do ocaso fervem os insetos.
Enfiei o que pude dentro de um grilo o meu destino.
Essas coisas me mudam para cisco.
A minha independência tem algemas."
Manoel de Barros

Crônica da loucura

19.09.04, Zana
Mário Prata

O melhor da Terapia é ficar observando os meus colegas loucos.
Existem dois tipos de loucos.
O louco propriamente dito e o que cuida do louco: o analista, o terapeuta, o
psicólogo e o psiquiatra. Sim, somente um louco pode se dispor a ouvir a
loucura de seis ou sete outros loucos todos os dias, meses, anos. Se não
era louco, ficou. Durante quarenta anos, passei longe deles. Pronto,
acabei diante de um louco, contando as minhas loucuras acumuladas.
Confesso, como louco confesso, que estou adorando estar louco semanal. O
melhor da terapia é chegar antes, alguns minutos e ficar observando os
meus colegas loucos na sala de espera. Onde faço a minha terapia é uma
casa grande com oito loucos analistas. Portanto, a sala de espera sempre
tem três ou quatro ali, ansiosos, pensando na loucura que vão dizer dali
a pouco. Ninguém olha para ninguém. O silencio é uma loucura. E eu, como
escritor, adoro observar pessoas, imaginar os nomes, a profissão, quantos
filhos têm, se são rotarianos ou leoninos, corintianos ou palmeirenses.
Acho que todo escritor gosta desse brinquedo, no mínimo, criativo. E a
sala de espera de um "consultório médico", como diz a atendente
absolutamente normal (apenas uma pessoa normal lê tanto Paulo Coelho como
ela), é um prato cheio para um louco escritor como eu. Senão, vejamos: Na
última quarta-feira, estávamos: (1)eu, (2)um crioulinho muito bem
vestido, (3) um senhor de uns cinqüenta anos e (4)uma velha
gorda. Comecei, é claro, imediatamente a imaginar qual seria o problema de
cada um deles. Não foi difícil, porque eu já partia do principio que todos
eram loucos, como eu. Senão, não estariam ali, tão cabisbaixos e
ensimesmados. (2) O pretinho, por exemplo. Claro que a cor, num país
racista como o nosso, deve ter contribuído muito para leva-lo até aquela
poltrona de vime. Deve gostar de uma branca, e os pais dela não aprovam
ou conseguiu entrar como sócio do "Harmonia do Samba"? Notei que o tênis
estava um pouco velho. Problema de ascensão social, com certeza. O olhar
dele era triste, cansado. Comecei a ficar com pena dele. Depois notei que
ele trazia uma mala. Podia ser o corpo da namorada esquartejada lá
dentro. Talvez apenas a cabeça. Devia ser um assassino, ou suicida, no
mínimo. Podia ter também uma arma lá dentro. Podia ser perigoso.
Afastei-me um pouco dele no sofá. Ele dava olhadas furtivas para dentro
da mala assassina. (3 )E o senhor de terno preto, gravata, meias e
sapatos também pretos? Como ele estava sofrendo, coitado. Ele disfarçava,
mas notei que tinha um pequeno tique no olho esquerdo. Corno, na certa. E
manso. Corno manso sempre tem tiques. Já notaram? Observo as mãos. Roía
as unhas. Insegurança total, medo de viver. Filho drogado? Bem provável.
Como era infeliz esse meu personagem. Uma hora tirou o lenço e eu já
estava esperando as lágrimas quando ele assoou o nariz violentamente,
interrompendo o Paulo Coelho da outra. Faltava um botão na camisa. Claro,
abandonado pela esposa. Devia morar num flat, pagar caro, devia ter
dívidas astronômicas. Homossexual? Acho que não. Ninguém beijaria um homem
com um bigode daqueles. Tingido.
(4) Mas a melhor, a mais doida, era a louca gorda e baixinha. Que bunda
imensa. Como sofria, meu Deus. Bastava olhar no rosto dela. Não devia
fazer amor há mais de trinta anos. Será que se masturbaria? Será que era
esse o problema dela? Uma velha masturbadora? Não! Tirou um terço da
bolsa e começou a rezar. Meu Deus, o caso é mais grave do que eu pensava.
Estava no quinto cigarro em dez minutos. Tensa. Coitada. O que deve ser
dos filhos dela? Acho que os filhos não comem a macarronada dela há
dezenas e dezenas de domingos. Tinha cara também de quem mentia para o
analista. Minha mãe rezaria uma Salve-Rainha por ela, se a conhecesse.
Acabou o meu tempo. Tenho que ir conversar com o meu psicanalista. Conto
para ele a minha "viagem" na sala de espera. Ele ri, ri muito, o meu
psicanalista e diz:"(2) O Ditinho é o nosso office-boy.(3) O de terno
preto é representante de um laboratório multinacional de remédios lá no
Ipiranga e passa aqui uma vez por mês com as novidades.(4) E a gordinha é
a Dona Dirce, a minha mãe. E (1) você, não vai ter alta tão cedo..."

Guardar

07.09.04, Zana
Antonio Cícero

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela. Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro.
Do que um pássaro sem vôos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.

Manoel de Barros II

07.09.04, Zana
*
É mais fácil fazer da tolice um regalo do que da sensatez
*
Tudo que não invento é falso.
*
Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira.
*
Tem mais presença em mim o que me falta.
*
Melhor jeito que achei para me conhecer foi fazendo o contrário.
*
Sou muito preparado de conflitos.
*
Não pode haver ausência de boca nas palavras: nenhuma fique desamparada do ser que a revelou.
*
O meu amanhecer vai ser de noite.
*
Melhor que nomear é aludir. Verso não precisa dar noção.
*
O que sustenta a encantação de um verso (além do ritmo) é o ilogismo.
*
Meu avesso é mais visível do que um poste.
*
Sábio é o que adivinha.
*
Para ter mais certezas tenho que me saber de imperfeições.
*
A inércia é o meu ato principal.
*
Não saio de dentro de mim nem pra pescar.
*
Sabedoria pode ser que seja estar uma árvore.
*
Estilo é um modelo anormal de expresão: é estigma.
*
Peixe não tem honras nem horizontes.
*
Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada; mas quando não desejo contar nada, faço poesia.
*
Eu queria ser lido pelas pedras.
*
As palavras me escondem sem cuidado.
*
Aonde eu não estou as palavras me acham.
*
Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas.
*
Uma palavra abriu o roupão para mim. Ela deseja que eu a seja.
*
A terapia literária consiste em djesarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos.
*
Quero a palavra que sirva na boca dos passarinhos.
*
Esta tarefa de cessar é que puxa minhas frase para antes de mim.
*
Ateu é uma pessoa capaz de provar cientificamente que não é nada. Só se
compara aos santos. Os santos querem ser os vermes de Deus.
*
Melhor para chegar a nada é descobrir a verdade.
*
O artista é um erro da natureza. Beethoven foi um erro perfeito.
*
Por pudor sou impuro.
*
O branco me corrompe.
*
Não gosto de palavra acostumada.
*
A minha diferença é sempre menos.
*
Palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria.
*
Não preciso do fim para chegar.
*
Do lugar onde estou já fui embora.

FIM

Barros, Manoel. Livro sobre nada.


Poesia matemática

01.09.04, Zana
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Poesia Matemática

Millôr Fernandes

Às folhas tantas
do livro matemático
um Quociente apaixonou-se
um dia
doidamente
por uma Incógnita.
Olhou-a com seu olhar inumerável
e viu-a do ápice à base
uma figura ímpar;
olhos rombóides, boca trapezóide,
corpo retangular, seios esferóides.
Fez de sua uma vida
paralela à dela
até que se encontraram
no infinito.
"Quem és tu?", indagou ele
em ânsia radical.
"Sou a soma do quadrado dos catetos.
Mas pode me chamar de Hipotenusa."
E de falarem descobriram que eram
(o que em aritmética corresponde
a almas irmãs)
primos entre si.
E assim se amaram
ao quadrado da velocidade da luz
numa sexta potenciação
traçando
ao sabor do momento
e da paixão
retas, curvas, círculos e linhas sinoidais
nos jardins da quarta dimensão.
Escandalizaram os ortodoxos das fórmulas euclidiana
e os exegetas do Universo Finito.
Romperam convenções newtonianas e pitagóricas.
E enfim resolveram se casar
constituir um lar,
mais que um lar,
um perpendicular.
Convidaram para padrinhos
o Poliedro e a Bissetriz.
E fizeram planos, equações e diagramas para o futuro
sonhando com uma felicidade
integral e diferencial.
E se casaram e tiveram uma secante e três cones
muito engraçadinhos.
E foram felizes
até aquele dia
em que tudo vira afinal
monotonia.
Foi então que surgiu
O Máximo Divisor Comum
freqüentador de círculos concêntricos,
viciosos.
Ofereceu-lhe, a ela,
uma grandeza absoluta
e reduziu-a a um denominador comum.
Ele, Quociente, percebeu
que com ela não formava mais um todo,
uma unidade.
Era o triângulo,
tanto chamado amoroso.
Desse problema ela era uma fração,
a mais ordinária.
Mas foi então que Einstein descobriu a Relatividade
e tudo que era espúrio passou a ser
moralidade
como aliás em qualquer
sociedade.